Um artigo
publicado no jornal New York Times, e reproduzido por aqui no site UOL, é de
causar constrangimento a todo brasileiro mais crítico. Nele, Vanessa Bárbara
revela com contundente precisão o quanto a TV Globo historicamente interfere no
cotidiano de um país que figura entre os de mais baixa qualificação de ensino
do planeta. Lembrar que William Bonner comparou o telespectador médio de TV do
país com Homer Simpson chega a ser obrigatório.
GIGANTE DA MÍDIA CATIVA OS
TELESPECTADORES COM NOVELAS VAZIAS E COMENTÁRIOS INEPTOS NO NOTICIÁRIO.
Vanessa Barbara, no International
New York Times, via UOL
Em São Paulo
No ano
passado, a revista "The Economist" publicou um artigo sobre a Rede
Globo, a maior emissora do Brasil. Ela relatou que "91 milhões de pessoas,
pouco menos da metade da população, a assistem todo dia: o tipo de audiência
que, nos Estados Unidos, só se tem uma vez por ano, e apenas para a emissora
detentora dos direitos naquele ano de transmitir a partida do Super Bowl, a
final do futebol americano".
Esse número
pode parecer exagerado, mas basta andar por uma quadra para que pareça
conservador. Em todo lugar aonde vou há um televisor ligado, geralmente na
Globo, e todo mundo a está assistindo hipnoticamente.
Sem causar
surpresa, um estudo de 2011 apoiado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística) apontou que o percentual de lares com um aparelho de
televisão em 2011 (96,9) era maior do que o percentual de lares com um
refrigerador (95,8) e que 64% tinham mais de um televisor. Outros pesquisadores
relataram que os brasileiros assistem em média quatro horas e 31 minutos de TV
por dia útil, e quatro horas e 14 minutos nos fins de semana; 73% assistem TV
todo dia e apenas 4% nunca assistem televisão regularmente (eu sou uma destes
últimos).
Entre eles,
a Globo é ubíqua. Apesar de sua audiência estar em declínio há décadas, sua
fatia ainda é de cerca de 34%. Sua concorrente mais próxima, a Record, tem 15%.
Assim, o que
essa presença onipenetrante significa? Em um país onde a educação deixa a
desejar (a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
classificou o Brasil recentemente em 60º lugar entre 76 países em desempenho
médio nos testes internacionais de avaliação de estudantes), implica que um
conjunto de valores e pontos de vista sociais é amplamente compartilhado. Além
disso, por ser a maior empresa de mídia da América Latina, a Globo pode exercer
influência considerável sobre nossa política.
Um exemplo:
há dois anos, em um leve pedido de desculpas, o grupo Globo confessou ter apoiado
a ditadura militar do Brasil entre 1964 e 1985. "À luz da História,
contudo", o grupo disse, "não há por que não reconhecer, hoje,
explicitamente, que o apoio foi um erro, assim como equivocadas foram outras
decisões editoriais do período que decorreram desse desacerto original".
Com esses
riscos em mente, e em nome do bom jornalismo, eu assisti a um dia inteiro de
programação da Globo em uma terça-feira recente, para ver o que podia aprender
sobre os valores e ideias que ela promove.
A primeira
coisa que a maioria das pessoas assiste toda manhã é o noticiário local, depois
o noticiário nacional. A partir desses, é possível inferir que não há nada mais
importante na vida do que o clima e o trânsito. O fato de nossa presidente,
Dilma Rousseff, enfrentar um sério risco de impeachment e que seu principal
oponente político, Eduardo Cunha, o presidente da Câmara, está sendo
investigado por receber propina, recebe menos tempo no ar do que os detalhes
dos congestionamentos. Esses boletins são atualizados pelo menos seis vezes por
dia, com os âncoras conversando amigavelmente, como tias velhas na hora do chá,
sobre o calor ou a chuva.
A partir dos
talk shows matinais e outros programas, eu aprendi que o segredo da vida é ser
famoso, rico, vagamente religioso e "do bem". Todo mundo no ar ama
todo mundo e sorri o tempo todo. Histórias maravilhosas foram contadas de
pessoas com deficiência que tiveram a força de vontade para serem bem-sucedidas
em seus empregos. Especialistas e celebridades discutiam isso e outros assuntos
com notável superficialidade.
Eu decidi
pular os programas da tarde -a maioria reprises de novelas e filmes de
Hollywood- e ir direto ao noticiário do horário nobre.
Há dez anos,
um âncora da Globo, William Bonner, comparou o telespectador médio do
noticiário "Jornal Nacional" a Homer Simpson -incapaz de entender
notícias complexas. Pelo que vi, esse padrão ainda se aplica. Um segmento sobre
a escassez de água em São Paulo, por exemplo, foi destacado por um repórter,
presente no jardim zoológico local, que disse ironicamente "É possível ver
a expressão preocupada do leão com a crise da água".
Assistir à
Globo significa se acostumar a chavões e fórmulas cansadas: muitos textos de
notícias incluem pequenos trocadilhos no final ou uma futilidade dita por um
transeunte. "Dunga disse que gosta de sorrir", disse um repórter
sobre o técnico da seleção brasileira. Com frequência, alguns poucos segundos
são dedicados a notícias perturbadoras, como a revelação de que São Paulo
manteria dados operacionais sobre a gestão de águas do Estado em segredo por 25
anos, enquanto minutos inteiros são gastos em assuntos como "o resgate de
um homem que se afogava causa espanto e surpresa em uma pequena cidade".
O restante
da noite foi preenchido com novelas, a partir das quais se pode aprender que as
mulheres sempre usam maquiagem pesada, brincos enormes, unhas esmaltadas, saias
justas, salto alto e cabelo liso. (Com base nisso, acho que não sou uma
mulher.) As personagens femininas são boas ou ruins, mas unanimemente magras.
Elas lutam umas com as outras pelos homens. Seu propósito supremo na vida é
vestir um vestido de noiva, dar à luz a um bebê loiro ou aparecer na televisão,
ou todas as opções anteriores. Pessoas normais têm mordomos em suas casas, que
são visitadas por encanadores atraentes que seduzem donas de casa entediadas.
Duas das
três atuais novelas falam sobre favelas, mas há pouca semelhança com a
realidade. Politicamente, elas têm uma inclinação conservadora. "A Regra
do Jogo", por exemplo, tem um personagem que, em um episódio, alega ser um
advogado de direitos humanos que trabalha para a Anistia Internacional visando
contrabandear para dentro dos presídios materiais para fabricação de bombas
para os presos. A organização de defesa se queixou publicamente disso, acusando
a Globo de tentar difamar os trabalhadores de direitos humanos por todo o
Brasil.
Apesar do
nível técnico elevado da produção, as novelas foram dolorosas de assistir, com
suas altas doses de preconceito, melodrama, diálogo ruim e clichês.
Mas elas
tiveram seu efeito. Ao final do dia, eu me senti menos preocupada com a crise
da água ou com a possibilidade de outro golpe militar -assim como o leão
apático e as mulheres vazias das novelas.
* VANESSA BARBARA é uma colunista
do jornal "O Estado de São Paulo" e editora do site literário "A
Hortaliça".
(***) FONTE: Conexão
Jornalismo
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