Nos últimos
dias, imagens de pessoas em versões mais velhas delas mesmas viraram a nova
febre das redes sociais no país. O responsável por isso foi o aplicativo
Faceapp, ferramenta para edição e aplicação de filtros a imagens, como a
simulação das faces em idades mais avançadas ou em outros gêneros. Contudo, seu
funcionamento e suas normas internas podem abrir espaço para abusos no uso e
compartilhamento dos dados de seus usuários.
O FaceApp
está disponível nas lojas de aplicativos Play Store (para o sistema operacional
Android) e Apple Store (para o sistema operacional iOS). Na loja Play Store no
Brasil estava listado em julho como o principal aplicativo na categoria
gratuitos. Com nota 4,5 de 5, no momento da publicação desta reportagem, o app
chegava perto de 1 milhão de downloads.
O programa é
anunciado como uma ferramenta para melhorar fotos e criar simulações por meio
de filtros. Nos modelos de edição há possibilidades de mudar cores do cabelo,
aplicar maquiagem ou estilos de barba e bigode, entre outros. O sistema de
inteligência artificial do app informa que pode encontrar “o melhor estilo para
você”.
Política de privacidade
A política
de privacidade do app traz informações sobre quais dados são coletados e quais
são os usos possíveis. Segundo o documento, são acessados as suas fotos e
“outros materiais” quando você posta. Quais outros materiais? O documento não
detalha. A empresa adota serviços de análise de dados (analytics) de terceiros
para “medir as tendências de consumo do serviço”. O que isso significa? Não
fica claro.
“Essas
ferramentas coletam informação enviada pelo seu aparelho ou por nosso serviço,
incluindo as páginas que você acessa, add-ons e outras informações que nos
auxiliam a melhorar o serviço”, diz o documento. São utilizados também
mecanismos de rastreamento como cookies, pixels e beacons (que enviam dados
sobre a navegação para a empresa e parceiros dela).
As
informações “de log” também são enviadas, como quando o indivíduo visita um
site ou baixa algo deste. A empresa também insere mecanismos para identificar
que tipo de dispositivo você está usando, se um smartphone, tablet ou
computador de mesa. Podem ser veiculados anúncios por anunciantes parceiros ou
instalados cookies dessas firmas.
Por meio
dessas tecnologias a sua navegação passa a ser totalmente rastreada. Segundo a
empresa, contudo, esse volume de informação é reunido sem que a pessoa seja
identificada. “Nós coletamos e usamos essa informação de análise de forma que
não pode ser razoavelmente usado para identificar algum usuário particular”,
informa o app.
As políticas
de privacidade afirmam que a informação não é vendida ou comercializada, mas
listam para quem a informação reunida pode ser compartilhada para as empresas
do grupo que controla o Faceapp, que também poderão utilizá-las para melhorar
os seus serviços. Também terão acesso empresas atuando na oferta do serviços,
que segundo o documento, o farão sob “termos de confidencialidade razoáveis”. O
que são termos razoáveis? O usuário não tem como saber.
O
compartilhamento poderá ser feito para anunciantes parceiros. Se a empresa for
vendida, ela poderá repassar as informações aos novos acionistas ou
controladores. De acordo com o documento, mudanças nos termos podem ser feitas
periodicamente, sem obrigação de aviso aos usuários. Assim, a empresa possui um
leque amplo de alternativas de compartilhamento sem que o usuário saiba quem
está usando suas informações e para quê.
Riscos
A diretora da
organização Coding Rights, Joana Varon, avalia que o uso do app traz uma série
de riscos e viola a legislação brasileira ao afirmar que poderá ser regido por
leis de outros países, inclusive o Artigo 11º do Marco Civil da Internet (Lei
Nº 12.965).
Joana
considera a política de privacidade do FaceApp muito permissiva, uma vez que
não é possível saber quais dados serão utilizados, como e por quais tipos de
empresas. Entretanto, ela acrescenta que certamente a empresa responsável e
seus “parceiros” trabalham os registros reunidos para alimentar sistemas de
reconhecimento facial, uma vez que o app gera um poderoso banco de dados, não
só de fotos dos usuários como de outras pessoas para as montagens (como de
amigos ou de celebridades).
Ela diz que
isso resulta em um problema grave, uma vez que as tecnologias de reconhecimento
facial têm se mostrado abusivas, como nas aplicações de segurança pública. As
preocupações levaram cidades a banir esse tipo de recurso, como São Francisco,
nos Estados Unidos, ou São Paulo, que proibiu o uso da tecnologia no metrô.
“As pessoas
ficam empolgadas mas no fim tem uma finalidade muito além do que só essa
brincadeira, que nem é tão clara. É claro que imagens estão sendo utilizadas
para aperfeiçoar o reconhecimento facial, tecnologia que tem se mostrado
totalmente nociva. Não é só identificação de pessoas, mas do humor e outras
características que não são comuns a outros tipos de dados biométricos, como
digital”, explica.
Venda de dados
Para Fábio
Assolini, analista sênior de segurança da Kaspersky, é possível que essas
imagens acabem sendo empregadas em usos problemáticos. “Por utilizar
inteligência artificial para fazer as modificações a partir do reconhecimento
facial, a empresa dona do app pode vender essas fotos para empresas desse tipo,
além desses dados facilmente caírem nas mãos dos cibercriminosos e serem
utilizados para falsificar nossas identidades”, diz.
Assolini diz
que os usuários devem tomar cuidado sobre como disponibilizam suas imagens para
reconhecimento facial ou até mesmo publicamente. “Temos que entender essas
novas maneiras de autenticação como senhas, já que qualquer sistema de
reconhecimento facial disponível a todos pode acabar sendo usado tanto para o
bem quanto para o mal”.
Dados expostos
Na opinião
do coordenador do grupo de pesquisa Estudos Críticos em Informação, Tecnologia
e Organização Social do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e
Tecnologia (IBICT), Arthur Bezerra, o argumento da parte de muitos usuários de
que não haveria problemas no Faceapp, uma vez que os dados das pessoas já estão
expostos na internet não procede.
“Embora
plataformas como o Google e o Facebook tenha uma enorme gama de dados sobre
nós, cada empresa busca formar seu banco de dados. E o Faceapp é desenvolvido
por uma empresa russa, então quando você faz o download, você está
compartilhando suas informações com uma nova companhia que você não sabe qual
é. Se eu dissesse por alguém para me dar a senha do Facebook, a pessoa provavelmente
não daria, pois todo mundo tem uma dimensão privada da sua vida”, disse.
Polêmicas
Modas como a
do FaceApp já levantaram preocupações antes. Foi o caso do desafio dos 10 anos,
que virou febre no Facebook no início do ano e provocou questionamentos pela
alimentação de sistemas de reconhecimento facial. No ano passado, o Ministério
Público abriu um inquérito para saber se a adoção dessa tecnologia pelo
Facebook violava ou não a legislação.
Iniciativas
em diversos países – como Estados Unidos, China e Rússia – vêm sendo criticadas
por defensores de direitos dos usuários. Empresas do setor, como a Microsoft,
chegaram a pedir publicamente a regulação dessas soluções técnicas. No Brasil,
o início da aplicação desses recursos pelo Sistema de Proteção ao Crédito no
ano passado também foi acompanhado de receios.