Cartas assinadas por Fidel Castro parabenizando Oscar Niemeyer por seu
trabalho que foram encontradas no lixo por um catador de rua. Sarau durante a
madrugada com direito a show particular de Nelson Sargento. Os dois casos estão
entre os relatos preferidos de Luiz Carlos Araújo, dono da livraria Mar de
Histórias, aberta em 1997 na Rua Francisco Sá, em Copacabana. O espaço resiste
até hoje, assim como outros na cidade, mostrando que é possível viver na
contramão do fechamento das livrarias. O segredo talvez vá além das páginas
escritas nos livros, porque estas lojas são espaços que reúnem histórias e
mantêm viva a troca (de exemplares e conhecimento) entre as pessoas.
É com orgulho que Araújo afirma que a Mar de História está nas fileiras
da resistência entre os sebos do Rio e com tristeza que diz que a tecnologia
acabou com as livrarias, com o papel impresso. O empreendimento tem um depósito
em Cascadura, uma loja de quatro andares no Centro e o espaço em Copacabana.
São mais de 350 mil livros no acervo. Todos de segunda mão e alguns raros e
preciosos, com dedicatórias de Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Lygia
Fagundes Telles, de Carolina Maria de Jesus para Cora Coralina — e de outros
nomes igualmente expressivos.
— Autores como Hilda Hilst e Carlos Drummond de Andrade são raridades
que chegam e vão embora rápido. Os colecionadores e leiloeiros levam. Trabalho
com livros desde 1979. Ter uma livraria é caro. Em 1997 eu tinha uma dívida de
R$ 60 mil, o que era muito dinheiro para a época. Foi quando resolvi
transformar o negócio em sebo — diz.
Araújo gosta do tête-à-tête e se recusa a fazer vendas pela internet.
— Nossa sobrevivência são os livros, mas também as muitas histórias.
Aqui acontece muita coisa. Tive acesso ao convite de posse de Tancredo Neves, a
um livro autografado por toda a seleção brasileira campeã mundial em 1970. Vivi
os saraus que rolavam até de manhã e tinham o Nelson Sargento cantando. Amo
isso e é aqui que vou morrer — afirma.
A professora Emmanuele Macaciel compartilha do mesmo amor pelos livros e pelos sebos. Ela é uma das sócias do Beco das Palavras, que há um ano divide um espaço de 400 metros quadrados com um brechó, um antiquário e uma cafeteria na Avenida Nossa Senhora de Copacabana.
— Aqui é um espaço cultural. Promovemos lançamentos de livros sem cobrar
os autores, só pedimos uma ajuda de custo para promover o evento. Recebemos
shows e palestras e toda segunda quarta-feira do mês, das 19h às 21h, temos um
sarau. Organizamos também um clube do livro para o público juvenil. Aqui o
tempo passa diferente — garante.
O Beco das Palavras reúne livros de todos os tipos e alguns tesouros.
Como um livro de Emmanuel Vão Gôgo (personagem que assinava uma seção de humor
escrita por Millôr Fernandes na revista O Cruzeiro), com assinaturas de
Fernanda Montenegro e Clarice Lispector. Ou um exemplar autografado por Chico
Xavier e Divaldo Franco. Tem ainda uma obra sobre a vida de Juscelino
Kubitschek assinada por sua mulher, Sarah, e o manuscrito “A velhinha de
Taubaté” autografado pelo próprio Luis Fernando Verissimo.
— Às vezes não sabemos sobre a história dos livros, como esse do
Emmanuel Vão Gôgo, que foi uma doação da Associação Brasileira de Letras. O do
Chico Xavier e Divaldo Franco foi um presente do Chico para o meu avô, e
convenci minha mãe a nos dar. As raridades surgem pela sorte do destino, e os
livros precisam circular — diz Emmanuele.
Assim como Copacabana recebeu o Beco das Palavras, Laranjeiras também
apresenta novas opções, como a Casa 11 Sebo e Livraria, que abriu há um ano e
promoveu em junho a Festa Literária de Laranjeiras; e a Jacaré Livros,
inaugurada em 2021.
Inauguração há dois meses no Flamengo
Quando ainda estava em obras, a Livraria Alento recebia com frequência
um mesmo visitante que queria saber quando seria a abertura. Um dia, quando os
livros estavam sendo arrumados nas estantes, ele apareceu e pediu para entrar.
Foi como se ele não aguentasse mais esperar e de lá saiu como uma pilha de
exemplares, como se tivesse encontrado na livraria o seu alento. Há dois meses,
o negócio funciona na Rua Senador Vergueiro, no Flamengo, e essa história é
contada por Plauto Ricardo de Sá e Benevides, pai da sócia Isabella Benevides.
— Parecia que ele estava angustiado. Durante a obra, várias pessoas
perguntavam quando iria abrir, mas ele vinha sempre — conta Benevides.
O espaço tem livros novos e é também um sebo. Nasceu do sonho do sócio
Felippe Marchiori e foi construído por ele e seu sogro Plauto, que fizeram toda
a marcenaria.
— Sempre gostei de livros e sempre trabalhei com eles. Eu era de uma livraria no Centro. Depois, fiz algumas vendas on-line, mas queria abrir negócio próprio. Gosto de atender as pessoas e ajudá-las a encontrar os livros. Adoro fazer essa conexão entre pessoas e livros. O ambiente é atrativo e a troca é muito gostosa, a gente conversa sobre as obras e sobre todos os assuntos. Pela internet é tudo muito frio e impessoal — opina Marchiori.
Isabella diz que o sonho de seu marido se tornou o seu e que ler é um
descanso para a sua mente. Acredita que o negócio do casal é um movimento de
resistência. A Alento também promove lançamentos e em breve terá um curso de
filosofia.
— As pessoas dizem que somos doidos por abrir uma livraria enquanto a
maioria já fechou, mas acreditamos na cultura e em sua importância. Muita gente
entra aqui e diz que está feliz por não ter aberto mais uma farmácia no local.
Somos um espaço de encontros. Temos uma cafeteria, e o pessoal entra aqui, toma
um café e pega um livro para ler. Não é só comprar um exemplar e sair —
destaca.
Jovens buscam de gibi a Dostoiévski
Foi no sebo Beta de Aquarius, na Rua Buarque de Macedo, que Ana Maria
Albernaz conheceu seu marido Antônio Seabra, dono do espaço aberto há 25 anos
no Catete. Ela conta que Antônio construiu o espaço baseado no local que ele
gostaria de frequentar, um ambiente agradável e acolhedor onde qualquer um
pudesse entrar e se sentar para ler. Também deveria estar sempre aberto para
receber os mais ávidos, por isso o sebo funciona de segunda a segunda. No
acervo, mais de 20 mil exemplares que atendem a diferentes públicos.
— Não temos uma cafeteria ou nada parecido. Os livros são o nosso grande
atrativo. Os sebos são de pessoas que nunca desistiram dos livros e que os
amam. Por isso existe um público que é cativo. Nada substitui um livro. Algumas
livrarias ainda resistiram, mas é muito difícil para o leitor, porque os preços
são muito altos. Quem gosta de ler quer comprar —acredita Ana.
Assim como seu marido, ela também é uma apaixonada por livros e por
sebos. Ela diz que na Beta de Aquarius acontece a surpresa do encontro.
— A relação das pessoas com livros é muito amorosa e é algo que procuramos respeitar e estimular. Muitas pessoas chegam aqui buscando exemplares que leram quando eram crianças ou de que os pais gostavam. Muitas obras têm dedicatórias, são grifadas, têm a leitura ali, impregnada. Somos apaixonados — expressa.
Os exemplares novos nos balcões são comprados em saldões e garimpados em
editoras. O grande tesouro são os de segunda mão, e há opções para estudantes
de mestrado, muitos exemplares de humanas, ciências sociais, geografia,
história, sociologia, urbanismo, cultura e ficção. E tudo é escolhido com uma
curadoria. Tem até um espaço de “saldão” com opções por apenas R$ 10. Há ainda
muitas obras de esoterismo e das mais variadas religiões, além de terapias
alternativas, feng shui e muito mais.
— É tudo muito bem-organizado para que o leitor possa encontrar o que
ele procura, e muitas vezes ele acaba achando o que nem sabia que estava
procurando — diz.
Ana observa que há uma renovação do público que, afirma, é muito
interessante. Diz que muitos jovens entre 17 e 25 anos, que não costumam ter
contato com livrarias, estão frequentando o sebo.
— Muitos nunca entraram em uma livraria ou conheciam no máximo a
biblioteca da escola, mas estão aqui comprando os mais diversos livros. Eles
buscam arte, poesia e clássicos da literatura. Eles gostam de autores como
Kafka, Fernando Pessoa, Edgar Allan Poe, Dostoiévski. É uma leitura muito
diversificada. Levam os clássicos e também quadrinhos e gibis. O livro é nossa
bandeira, e ficamos contentes de poder participar desse movimento — afirma.
**FONTE: O
Globo 100