sexta-feira, 18 de março de 2016

POESIA COMO VONTADE E REPRESENTAÇÃO


Por: Carmen Vasconcelos
Em: Tribuna do Norte

Fala-se comumente que não há diferença entre poesia e letra de música. Que letra de música é poesia, e com isso concordo. Concordo, aliás, que em toda obra de arte, seja ela feita com palavras, música, pincéis, mãos, computadores, há poesia. Seja a arte feita de papel, notas musicais, bronze, tinta, tecido, papel, gestos, areia. Para ser arte, há que evocar algo de poesia. Poesia é gênero, não espécie.

Sempre tive dificuldade com a questão da igualdade entre poesia e letra de música. Sempre penso poesia como gênero. Então, quero refletir um pouco, na esperança de que tal reflexão me dê um começo de resposta. Essa questão, na verdade, não é sobre a igualdade entre poesia e letra de música. O que está estabelecido na maior parte dos discursos sobre o assunto é a igualdade entre poema e letra de música. Pois quando se fala em poesia, como espécie, está-se querendo dizer poema.

Principalmente depois do verso livre, passou-se a defender que letra de música é poema. Que um não difere do outro. Quem defende essa igualdade, geralmente usa como argumento a voltagem de poesia que há na letra da música. Porque possuiria poesia, a letra de música seria um poema. Mas, aí, também uma pintura, uma escultura, uma peça de teatro – mesmo não escrita em versos – seriam poemas. Não o são, embora sejam – ou tenham potencialidade para ser – poesia, no seu sentido universal, como gênero.


Há outro argumento que poderia ser mais sólido para basear a dita igualdade entre letra de música e poema. A arte do poema foi a primeira a contar – e cantar – o mundo. A figura do bardo é lembrada como aquele que diz – canta – o verso. O elemento rítmico exigido para se caracterizar o poema vem daí, dessa intimidade com a música. O poema é melódico. Por isso, muitos musicaram poemas.

Mas cada qual com seu ritmo, a cada um a sua especificidade. Letra de música e poema são obras de arte que contém – ou podem conter – poesia, mas são diferentes entre si. Quando musicado, um poema torna-se precisamente isto: um poema musicado. A letra de música já nasce com a intenção de ser letra musicada. O poema, não. O poema nasce querendo ser dito. Declamado, como se dizia antigamente. Recitado.

A palavra recitar, porém, mostra também a irmandade imemorial entre letra de música e poema. Recital é audição de música. Sarau também é reunião festiva que evoca tanto poema, quanto música.

Apesar da irmandade, não há sentido em negar as sutis diferenças, não há sentido em negar ao poema – e à letra de música – o seu lugar único no mundo, a sua identidade própria.

Para o poema, quando musicado, cria-se um ritmo novo, uma diferente melodia. Mas o poema já guardava em si outra melodia. Já tinha nascido com ela. E só porque já tinha melodia, poder-se-ia chamar poema.

A letra de música é letra para uma música. Em si, não contém melodia. Seu ritmo é dado pelas notas musicais, não por uma melodia própria e independente dessas notas.

Letra de música é poesia, ou pode ser. Pode ser até mais poesia do que muito poema por aí. Não há dúvidas. Há letras de músicas com um vigor poético de deixar alguns poemas envergonhados. Letra de música, porém, não é poema.

Poesia é gênero. É o que busca todo aquele que tenta realizar uma obra de arte. É o que, precisamente define a arte. Poesia é sempre uma longa procura. É, portanto, vontade e representação da arte.



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