Por: Carmen Vasconcelos
Em: Tribuna do Norte
Fala-se
comumente que não há diferença entre poesia e letra de música. Que letra de
música é poesia, e com isso concordo. Concordo, aliás, que em toda obra de
arte, seja ela feita com palavras, música, pincéis, mãos, computadores, há
poesia. Seja a arte feita de papel, notas musicais, bronze, tinta, tecido,
papel, gestos, areia. Para ser arte, há que evocar algo de poesia. Poesia é
gênero, não espécie.
Sempre tive
dificuldade com a questão da igualdade entre poesia e letra de música. Sempre
penso poesia como gênero. Então, quero refletir um pouco, na esperança de que
tal reflexão me dê um começo de resposta. Essa questão, na verdade, não é sobre
a igualdade entre poesia e letra de música. O que está estabelecido na maior
parte dos discursos sobre o assunto é a igualdade entre poema e letra de música.
Pois quando se fala em poesia, como espécie, está-se querendo dizer poema.
Principalmente
depois do verso livre, passou-se a defender que letra de música é poema. Que um
não difere do outro. Quem defende essa igualdade, geralmente usa como argumento
a voltagem de poesia que há na letra da música. Porque possuiria poesia, a
letra de música seria um poema. Mas, aí, também uma pintura, uma escultura, uma
peça de teatro – mesmo não escrita em versos – seriam poemas. Não o são, embora
sejam – ou tenham potencialidade para ser – poesia, no seu sentido universal,
como gênero.
Há outro
argumento que poderia ser mais sólido para basear a dita igualdade entre letra
de música e poema. A arte do poema foi a primeira a contar – e cantar – o
mundo. A figura do bardo é lembrada como aquele que diz – canta – o verso. O
elemento rítmico exigido para se caracterizar o poema vem daí, dessa intimidade
com a música. O poema é melódico. Por isso, muitos musicaram poemas.
Mas cada
qual com seu ritmo, a cada um a sua especificidade. Letra de música e poema são
obras de arte que contém – ou podem conter – poesia, mas são diferentes entre
si. Quando musicado, um poema torna-se precisamente isto: um poema musicado. A
letra de música já nasce com a intenção de ser letra musicada. O poema, não. O
poema nasce querendo ser dito. Declamado, como se dizia antigamente. Recitado.
A palavra
recitar, porém, mostra também a irmandade imemorial entre letra de música e
poema. Recital é audição de música. Sarau também é reunião festiva que evoca
tanto poema, quanto música.
Apesar da
irmandade, não há sentido em negar as sutis diferenças, não há sentido em negar
ao poema – e à letra de música – o seu lugar único no mundo, a sua identidade
própria.
Para o
poema, quando musicado, cria-se um ritmo novo, uma diferente melodia. Mas o
poema já guardava em si outra melodia. Já tinha nascido com ela. E só porque já
tinha melodia, poder-se-ia chamar poema.
A letra de
música é letra para uma música. Em si, não contém melodia. Seu ritmo é dado
pelas notas musicais, não por uma melodia própria e independente dessas notas.
Letra de
música é poesia, ou pode ser. Pode ser até mais poesia do que muito poema por
aí. Não há dúvidas. Há letras de músicas com um vigor poético de deixar alguns
poemas envergonhados. Letra de música, porém, não é poema.
Poesia é
gênero. É o que busca todo aquele que tenta realizar uma obra de arte. É o que,
precisamente define a arte. Poesia é sempre uma longa procura. É, portanto,
vontade e representação da arte.
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