Cento e
vinte e oito anos depois da assinatura da Lei Áurea, que concedeu alforria aos
negros importados da África para viverem em condições sub-humanas no novo mundo
que se colonizava à época, ainda hoje, com todo avanço da tecnologia e da
ciência, há registros de trabalho análogo à escravidão. Nos últimos quatros
anos, o Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Norte (MPT-RN) recebeu
32 denúncias de casos que se enquadram neste tipo de situação, sendo 15 deles
somente no ano passado.
Este ano o
órgão já investiga cinco ocorrências. Dados do Ministério do Trabalho e Emprego
(MTE), órgão que juntamente com os MPTs espalhados pelo país realiza operações
de resgate a trabalhadores em situações degradantes, indicam que de 2000 até o
final do ano passado 36 indivíduos foram resgatados no território potiguar, com
a devida punição na justiça dos empregadores correspondentes.
O número é
bem abaixo do que ocorre no Maranhão, por exemplo, outro estado nordestino que
no mesmo período contabilizou o resgate de 3.192 pessoas mantidas como escravas
modernas. Historicamente, o estado não conta com grande concentração de
trabalho escravo, segundo destaca o próprio MPT.
No entanto,
todo tipo de condições aviltantes que afetem a dignidade do trabalhador deve
ser combatida De acordo com a legislação
brasileira, a escravidão moderna ocorre quando uma pessoa controla a outra, de
tal forma que retire dela sua liberdade individual, com a intenção de
explorá-la. Configuram situações como essa o
tráfico de pessoas, o trabalho infantil, a exploração sexual, o
recrutamento de pessoas para conflitos armados e o trabalho forçado em
condições degradantes, com extensas jornadas, sob coerção, violência, ameaça ou
dívida fraudulenta.
O titular da
Coordenadoria de Combate ao Trabalho Escravo do MPT-RN, procurador do Trabalho
Luis Fabiano Pereira, explica que o estado do Maranhão é uma exceção à regra na
região. O Nordeste, segundo ele, é uma espécie de exportador de trabalhadores,
que em busca de melhores condições de vida migram para outros estados, o que
explica o baixo número oficial de empregados em condições de escravidão moderna
por estas terras – comparado com outros estados. No caso do Rio Grande do
Norte, a maioria desses indivíduos deixa o interior em direção às regiões Norte
e Centro-Oeste para atuar, sobretudo, em fazendas.
Luiz Fabiano
Pereira, procurador do Trabalho
“O Rio
Grande do Norte está em uma região onde, além do histórico de migrações para os
grandes centros s desde o século passado, aqui temos também um fluxo de pessoas
para fora, praticamente um tráfico de pessoas. Não chamamos de migração, mas de
aliciamento”, diz o procurador. Segundo Pereira, os registros de trabalho
escravo locais estão concentrados predominantemente nos territórios de
mineração, no Seridó.
Dos
trabalhadores resgatados em todo o país, 3,5% (35 pessoas) saíram do Rio Grande
do Norte, no ano passado. As informações são do MTE, que indica ainda que esse
índice é bem maior do que o registrado em 2014, quando 0,28% (5 trabalhadores)
dos resgatados eram originários do estado.
Luis Sérgio
Félix, 56, natural de Muriú e morador de Natal desde os 14 anos de idade, é um
desses potiguares que deixaram o estado para trabalhar fora. Há cincos anos,
quando atuava como pescador no litoral natalense, recebeu uma proposta para
ganhar a vida como auxiliar de marinheiro em uma empresa carioca de dragagens e
construção. Nesta atividade ele teria de deixar a esposa, com quem é casado há
37 anos e um filho à época adolescente, para navegar em alto mar, percorrendo a
costa brasileira entre o Nordeste e Sudeste.
A proposta
era boa, segundo ele confirma. Os primeiros meses no emprego foram considerados
normais. Ele integrava uma equipe de 50 homens escalados para cuidar da
manutenção de uma draga, tipo de embarcação. Para se ter uma ideia do tamanho,
o barco contava com dois guindastes. Por volta de 2013 a empresa Bandeirantes
Dragagem e Construção Ltda., sua empregadora, começou a enfrentar uma crise
financeira, agravada pela atual recessão sofrida no país, resultando na
desativação da embarcação onde o potiguar trabalhava.
A partir daí
começou a saga de Luis. A ordem foi paralisar as atividades na draga e
transportá-la para o Ceará, onde ficou atracada no Porto de Mucuripe, em
Fortaleza. Os 50 funcionários se transformaram em dois, sendo um deles Luis.
Ele e o colega – natural daquele estado
– passaram a cuidar sozinhos da embarcação. Um trabalhava de manhã e o outro à
noite, no caso, Luis. No mesmo período, começou uma série de atrasos de
salário. “No ano passado atrasavam praticamente todo mês”, lembra o auxiliar de
marinheiro.
Sem dinheiro
no bolso, só aumentavam as dificuldades. De acordo com o potiguar, sem conhecer
ninguém no Ceará, ele era obrigado a morar no barco, que se encontrava atracado
a 800 metros da costa. Ele tinha de se virar para conseguir comida, já que a
empresa também deixou de enviar o vale alimentação. Água potável era escassa e
não havia iluminação.
A dupla
vivia em um alojamento repleto de goteiras e convivia com o risco de se
acidentar no convés devido a existência de buracos no piso afetado pela
corrosão. Os dois guindastes também não eram devidamente inspecionados. Sozinho
dentro da draga, Luis afirma que não era raro criminosos fugidos da polícia
aparecerem nos arredores da embarcação. “Era um lugar muito perigoso e tivemos
de arrumar dois cães para ficarem a bordo com a gente”, relata.
Sem documento, pescador, agora
vive de bicos
Questionado
sobre o que o motivou a ficar tanto tempo sob as condições degradantes de
trabalho no Ceará, Luis Sérgio disse que acreditava na palavra da empresa, que
prometia melhorias. “A empresa sempre falava que ia melhorar e que futuramente
iria nos agradecer. Nisso eu fui ficando”, explicou.
Além disso,
ele conta que a esposa, com quem conversava pelo telefone sempre que podia,
dizia que ele precisava aguentar, também acreditando nas melhorias das
condições de trabalho do marido. “Ela sempre pedia para eu segurar mais um
pouco. Rapaz, só eu e Deus sabemos o que passei naquele lugar”, desabafa.
Luís Sérgio
Félix, pescador desempregado, ex-trabalhador escravo
Somente em
janeiro deste ano Luis Sérgio e seu colega de trabalho foram resgatados. Foi o
próprio Luis quem fez a denúncia. Auditores do MTE cearense estiveram no local
e constataram a existência do trabalho análogo à escravidão. O potiguar
conseguiu voltar para casa custeado pelo próprio MTE, mas agora enfrenta novas
dificuldades, já que a Bandeirantes Dragagem e Construção ainda não devolveu
seus documentos trabalhistas, como a Carteira de Trabalho.
Luis está
desempregado há seis meses e vive de bicos. Neste domingo, porém, ele está de
volta ao mar, mas dessa vez como pescador, profissão que o sustentava antes de
virar auxiliar de marinheiro. Só retorna à terra firme na segunda ou
terça-feira pela manhã, trabalhando para um amigo, que se compadeceu de sua
situação. Contudo, nada de carteira assinada, por enquanto. “Estou sendo
obrigado a viver de bicos”, lamentou.
Entenda o que é trabalho escravo
O trabalho
escravo está previsto no Código Penal, na Constituição Federal, e em convenções
da Organização Internacional do Trabalho (OIT), vinculada à Organização das
Nações Unidas (ONU).
Confira abaixo:
Legislação
Nacional:
1º) a
dignidade da pessoa humana e fundamentos sociais de trabalho, elencando, ainda,
como direitos fundamentais (art. 5°), a proibição de tratamento desumano ou
degradante e a função social da propriedade. Diz ainda que a ordem econômica
(art. 170) tem que ser fundada na valorização social do trabalho e na
finalidade de assegurar a todos uma justiça digna.
Já o art.
149 do CP Brasileiro diz que escravidão é “reduzir alguém à condição análoga a
de escravo, quer submetendo a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, quer
sujeitando a condições degradantes de trabalho, quer restringindo por qualquer
meio a sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou
preposto”. A pena é de dois a oito anos de reclusão e multa, além da pena
correspondente à violência.
Legislação Internacional:
A ONU diz
que escravidão é o estado e a condição de um indivíduo em que se exercem, total
ou parcialmente, alguns ou todos os atributos do direito de propriedade, ou
seja, a velha relação entre escravo e objeto.
A
escravidão, para a entidade mundial, só se dá quando o empregador fere o
direito de liberdade do empregado, o que ocorre normalmente quando o
trabalhador contrai dívidas com o empregador e precisa prestar serviços para
sanar esses débitos.
SAIBA
MAIS
Números
36 resgates
de trabalhadores entre 2000 e 2015 RN
48.173
resgates de trabalhadores entre 2000 e 2015 no Brasil
32 denúncias
ao MPT entre 2012 e este ano no RN. Destes, 7 Termos de Ajustamento de Conduta
(TACs) assinados por empregadores e 2 Ações Civis Públicas ajuizadas.
* Dados: MTE
e MPT-RN
Serviço
O MPT-RN
orienta que denúncias sobre condições análogas à escravidão podem ser feitas
por telefone ou os denunciantes podem ir a uma das unidades do MPT no estado,
existentes em Caicó (84 34174455), Mossoró (84 34222900) e Natal (84 40062800).
Também é possível fazer o procedimento por formulário online no site: http://www.prt21.mpt.gov.br/servicos/as
(*) FONTE: Novo
Jornal
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