À primeira vista, seria difícil encontrar dois autores tão distintos. Dante é a voz poética da cristandade medieval, exaltada e sublime; Joyce é um rebelde moderno e blasfemador, sórdido e lascivo, um homem descrito por Virginia Woolf como “um universitário enjoado coçando as espinhas”.
No entanto, os dois escritores têm muito em comum. É verdade que a linguagem da “Divina Comédia” de Dante pode ser um pouco melíflua para alguns ouvidos modernos, mas também é a linguagem da rua, áspera e abrasiva, repleta de insultos e abusos. Dante optou por escrever no vernáculo (e, portanto, para o leitor comum) em vez de em latim. Ao fazê-lo, desempenhou um papel importante no estabelecimento do italiano cotidiano como a língua literária de seu povo. Foi uma escolha que ajudou a revolucionar também a escrita de outras culturas europeias.
Por sua vez, Joyce tem um ouvido estranhamente apurado para o discurso dos dublinenses da classe trabalhadora, e “Ulisses”, que está repleto de conversas de pub, fofocas, polêmicas políticas e invectivas satíricas, é um dos primeiros romances em inglês a retratar o que poderíamos agora chamar de cultura de massa. Inclui jornalismo tabloide, jargão científico, um pastiche de ficção romântica feminina, a linguagem do inconsciente e muito mais. Realmente não há resposta para a pergunta “qual é o estilo de Joyce?” — mesmo que ele pudesse passar dias a fio esculpindo uma frase.
Como podemos conjugar visões aparentemente contraditórias mas simultaneamente semelhantes?
Para Joyce, poder-se-ia afirmar, é a ideia de comédia. Não é comédia no sentido de fazer cócegas nas costelas, embora Joyce possa ser mais engraçado do que a maioria dos outros escritores modernos. É antes uma comédia no sentido profundo da palavra que se encontra no título de Dante, “A Divina Comédia”, que é mais uma questão de visão do que de riso.
Comédia para Dante significa a fé de que, apesar das aparências em contrário, tudo está bem. Isto é naturalmente verdade para um cristão devoto como Dante, para quem o amor já venceu, em princípio, a violência e o ódio; mas é também o credo do ateu Joyce, para quem nada no grande ciclo das coisas pode ser finalmente perdido, mas retornará sob uma aparência diferente. Seus romances, que andam em círculos, são microcosmos desse universo.
James Joyce: um escritor não trágico
Nesse sentido, Joyce é o mais incomum dos escritores modernistas, um escritor não trágico. A comédia, na sua opinião, é uma espécie de realismo: se fosse possível livrarmo-nos das nossas fantasias e ilusões e ver o mundo como ele realmente é, passaríamos a aceitá-lo numa espécie de alegria cósmica. A tragédia não necessariamente discorda. Simplesmente chama a atenção para a dolorosa autotransformação envolvida em ver as coisas como elas são e perguntar se a dor vale a pena.
Joyce e Dante compartilham o incorporamento do pensamento científico à arte. “Ulisses” está cheio dessas referências. A mais bela e pingente ocorre no capítulo 17 quando Leopold Bloom e Stephen Dedalus têm uma visão das estrelas:
“The heaventree of stars hung with humid nightblue fruit.”
Aqui testemunhamos a reencenação do momento em que Virgílio e Dante emergem do Inferno para o ar noturno (E quindi uscimmo a riveder le stelle). Para Dante as estrelas são uma estrada larga para Deus. Para Joyce obviamente não.
Essa confluência facilita a compreensão de Leopold Bloom, o porquê da
passividade frente à traição de sua esposa. Ele possui visões elevadas
relativas à “futilidade do triunfo” dada “a apatia das estrelas” em relação a
dramas humanos infinitamente pequenos.
Quando analisamos o regresso de Bloom para sua casa em correspondência
com o massacre perpetrado contra seus rivais pelo Ulisses da Odisseia homérica,
fica patente a reformulação do herói por parte de Joyce como uma figura de
empatia, iluminação e resistência. O mundo mudou, o herói não é mais aquele e o
homem precisa aprender a conviver com suas limitações.
Roberson Guimarães é
médico e crítico literário. É colaborador do Jornal Opção.
***FONTE: JORNAL OPÇÃO
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